Boom imobiliário ameaça cenários cinematográficos de São Paulo

29-03-2011 10:19

 

Rodrigo Bertolotto
Do UOL Notícias
Em São Paulo

Rua cinematográfica não cabe na cidade real de São Paulo

Uma favela removida pela prefeitura, um galpão que virou shopping, uma casa fotogênica que virou pó após venda e demolição. A tarefa de produtor de locação reserva algumas surpresas para quem desempenha essa função essencial para as filmagens de comerciais para a TV e longa-metragens para o cinema.

São Paulo é uma mistureba de cenários, com dois centros (um degradado, outro moderno), zonas industriais, favelas cenográficas e emaranhados de viadutos. Isso sem falar nas ruas encantadoras despercebidas para quem só transita pelas grandes avenidas.

Esse urbanismo bagunçado facilita o trabalho de quem ganha a vida encontrando locais para gravações. Mas o atual boom imobiliário mudou, e mudará, a cara de vários bairros, o que acaba minando o “book de locações” já catalogado pelos produtores.

“Cheguei para filmar em uma casa na Lapa e recebi a notícia que ela seria demolida dali a quatro dias. Ainda bem que a cena era simples e fizemos tudo em um dia. Mas foi uma pena, porque a casa tinha uma fachada rococó e a cozinha era muito bonita, com azulejos antigos”, conta Jeferson Fleck, produtor de TV e cinema há 12 anos.

Em outra ocasião, ele encontrou semi-demolido o galpão onde iria gravar um comercial. “Tivemos que fazer malabarismo para ter a luz que o diretor procurava”, relata Fleck. O galpão veio abaixo e no lugar surgiu o Shopping Vila Olímpia.

Ensaiar, focar e filmar

  • João Sal/Folhapress

    Wagner Moura e Letícia Sabatella ensaiam cena

  • Divulgação

    Equipe grava documentário no centro paulistano

  • Carol Guedes/Folhapress

    CET fecha avenida para garantir filmagem externa

    No vídeo acima, Fleck filma na rua Ernest Friedrich Jost, no bairro de Pinheiros, local que sofre investidas de incorporadoras para derrubar um conjunto de coloridas casas sexagenárias para erguer arranha-céus residenciais de alto padrão.

    Na última dessas ofertas, a construtora Tecnisa tentou comprar cinco residências para que sua incorporação vizinha tivesse mais área de lazer. “Essa rua é muito cinematográfica. Se trocarem por um prédio cheio de muros e grades, a cidade perde muito”, opina o produtor Marcelo Campos, que já gravou na mesma rua.

    O produtor Paulo Sakopniak também enfrentou situação similar, mas em cenário menos idílico. Era a favela do Jardim Edite, que foi apagada do lado do novo cartão-postal paulistano: a ponte estaiada sobre o rio Pinheiros. “Quando fui checar a locação, metade da favela estava no chão. Tivemos que gravar em Paraisópolis”, conta Sakopniak, sobre sua surpresa durante a filmagem em 2008 do longa-metragem de ação chinês “Plastic City”. No ano seguinte, a favela sumiu da paisagem cosmopolita do Brooklin paulistano (confira em vídeo abaixo).  

    Sakopniak já selecionou os cenários para filmes como “Carandiru”, “Bruna Surfistinha”, “Lula – O Filho do Brasil” e “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias”. Para ele, as mudanças na cidade prejudicam mais quem trabalha em comerciais de TV. “Em propaganda, tudo tem que ser perfeito, como essas famílias de propaganda de margarina. Eles até apagam digitalmente algo que não queiram no quadro. Já o cinema busca mais a realidade”, opina Sakopniak.

Prefeitura tira favela de paisagem globalizada de São Paulo


 

Em gravação de spot de TV, rua arborizada atrapalha (a sombra cria variação de luz), e os carros estacionados também (os moradores têm que tirar no dia anterior, mas, claro, tudo sanado mediante um cachê pelos “direitos de imagem” de seu lar ou só da fachada).

Bel Aquino trabalha na função há 30 anos (mais que o dobro que seus concorrentes citados acima). Seu arquivo tem mais de 8.000 locais e tem que ser atualizado constantemente com tanta mudança na cidade. “Nosso serviço é como uma gincana. O diretor do comercial diz que quer uma rua de paralelepípedos com casas térreas e um parque no fundo. Buscamos no nosso catálogo e corremos para todas as opções para buscar a ideal para a filmagem”, compara Aquino.

Além de contentar o diretor e entrar em acordo com os moradores, é preciso comunicar à CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) com 15 dias de antecedências –um prazo irreal para os cronogramas apressados das agências de publicidade. Além disso, deve-se pagar até R$ 1.634,00, dependendo da via e da ocupação nela. A quantidade de solicitações de filmagem quadruplicou nos últimos anos. Se chover ou houver qualquer imprevisto, a produção tem de encarar novamente os prazos e os custos para conseguir gravar.